Crónica de Alexandre Honrado – Feliz hipocrisia – a minha história de um banco de Natal

Confundo-me com a multidão que corre para os descontos, afinal a época natalícia trouxe umas surpresas.

Lá vou eu, pequenote entre a multidão e dirijo-me ao Carmo, no coração da cidade (capital, portuguesa). É uma praça cheia de magia com um quartel e uma fonte com golfinhos de pedra; gosto de fontes. É o Carmo! O Carmo de tanta história e maiores recordações, da saída da GNR a cavalo para dar umas porrinhadas nos opositores do regime (como diria Pepetela), às glórias de abril, pois foi ali que Marcelo Caetano se refugiu em abril de 1974. O mesmo Carmo, onde eu escrevi, sentado num banco de pedra, um pequeno livrinho – 25 de Abrir O Abril que nos fez, depois editado com ilustrações da Maria João Lopes  – para explicar às crianças porque é que afinal nos tornámos nós. (A Maria João pintou na capa o Salgueiro Maia, ou outro por ele, com olhos claros, e até houve um miúdo que me perguntou se era eu, com lentes de contacto).

Carmo, dizia. Um antigo convento da Ordem dos Carmelitas da Antiga Observância transformado em Quartel, um Quartel transformado em símbolo da Liberdade. Sim, a liberdade só nos sufoca quando sofremos a sua falta!

É quase natal e vou até ao Carmo. Desta vez não cantarei A Portuguesa.

A cidade resplandece num brilho de luzes e nas pessoas que sabem descobrir a felicidade por entre as frestas.

Por mais estranho que isso pareça vou buscar um banco, de madeira, com um pequeno tampo forrado de tecido. Tão prosaico. O embrulho em que mo entregam faz o desdém dos que passam por mim. Não há laçarotes, cores garridas, o triste papelão da cor de todos os papelões tristes.

O rapaz que me entrega a encomenda está eufórico: como era um objeto pesado, fiz-lhe uma pega para ajudar no transporte. Fez mesmo. Uma perfeição.

O caminho para o Carmo não foi tão perfeito. Saio do metropolitano e subo, confundido, com a multidão. São muitos lances de escadas, pelo menos assim me parece. Elétricas, rolantes. Só o último lance é de pedra e leva-nos das entranhas ao céu, que é como quem diz, para a saída ao ar livre. Tão livre que ressoa. No último patamar está uma pedinte que conheço há anos. Vive ali no chão numa espécie de acampamento indiscreto. Está rodeada de objetos indecifráveis e tem na cabeça um gorro que lhe dá o ar de mais um bebé abandonado. Diz que levantou na Câmara Municipal uma tenda onde passará a noite, fora do  relento. Pergunta-me se eu notei como tem chovido. Não. Não notei. Do País de onde venho não há intempéries como as dela.

Cá fora, no alto da escada, já na rua, um outro pedinte. Tem umas barbas enormes e um ar de acusação. Ao peito colocou um retângulo de cartão onde escreveu: FELIZ HIPOCRISIA.

A tristeza é o vinho da vingança, disse o Carlos de Oliveira e é o que me ocorre quando o vejo. Talvez porque eu ando há anos bêbado de palavras e confunde-me isto da hipocrisia. E só preciso de um banco. De madeira. E de contos de Natal, como este que, se calhar, nem sei escrever.

 

Alexandre Honrado


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